“Situado na área central da cidade de São Paulo, o Largo do Arouche acompanha os diferentes
momentos
da urbanização paulistana, desde seu nascimento junto à fronteira oeste da cidade até a sua
modernização nos anos 1930, quando ganhou a sua configuração mais próxima da atual.
A origem do logradouro público encontra-se nas primeiras décadas do século XIX, momento em que a
cidade iniciava sua expansão rumo oeste, em terras além Rio Anhangabaú onde existiam várias
chácaras, propriedades de famílias abastadas. Entre elas, a Chácara do tenente-general José
Arouche
Rendon, advogado e militar, que também foi o encarregado de promover o arruamento dessa parte da
cidade (RIBEIRO; CAMPOS, 2007). Foi ele que, no começo do século XIX, demarcou dois largos
contíguos
em formatos diferentes e destinados a exercícios militares.”
No mapa da Cidade de São Paulo e seus Subúrbios, de 1847, pode-se constatar o crescimento da
cidade em direção à oeste, passando o Vale do Anhangabaú. No círculo, em vermelho, indica-se
a
localização do atual Largo do Arouche, que naquela época era conhecido como tanque do
Arouche.
Fonte: Arquivo Histórico Municipal, modificada pelos autores.
Nesse sentido, o largo tem sua origem situada naquela porção que foi chamada de “cidade nova”, termo
utilizado pelos viajantes para diferenciá-la da “cidade velha”, o núcleo de ocupação inicial. A
diferença apresentava-se na morfologia, já que a cidade nova era composta por um traçado mais
regular,
com quadras amplas e ruas mais largas e extensas. Segundo Matos (1954), ao longo do século XIX a
cidade
de São Paulo deixava de ser um burgo tranquilo, de aspecto colonial, transformando-se em um centro
comercial, cheio de vida. Foi assim que, em fins de XIX, o logradouro público recebeu melhorias como
calçamento e, em 1913, o nome oficial de Largo do Arouche, em homenagem ao tenente-coronel. Ao longo
das
duas primeiras décadas do novo século, essa parte oeste da cidade vivenciou um grande crescimento,
com o
parcelamento das antigas chácaras para usos urbanos, o que fez com que o Largo do Arouche deixasse
de
ser o limite final da cidade, à oeste.
A partir de 1930, entretanto, o Arouche já era outro, testemunhando as mudanças marcantes que se
deram
na cidade em função dos planos de modernização. A abertura e ampliação de vias, no âmbito do Plano
de
Avenidas de Prestes Maia, redirecionou o trânsito da cidade e resultou, também, em mudanças no largo
para viabilizar a ampliação do trânsito de automóveis. O Arouche foi reformulado, ganhou ares
europeus
com passeios em traçado orgânico e amplos gramados, já que ele fazia parte, na década de 1930, dos
trechos de terras mais nobres da cidade. Além de ser servido por modernas linhas de bondes
elétricos,
que circundavam seus jardins, estava próximo àquela que constituía a avenida central paulistana, a
Av.
São João, e aos bairros das classes abastadas como Higienópolis e Campos Elíseos.
Trecho do texto de Simone Scifoni e Helcio Beuclair (2021).
Planta de 1930, do Sara Brasil, onde já é possível notar, nesse momento, o crescimento e
adensamento
urbano da cidade. O Largo aparece ajardinado e remodelado com traçado orgânico. Fonte:
reprodução
GEOSAMPA.
Além de sua modernização como logradouro público, outro marco dos anos 1930 no Arouche foi a
instalação
de um monumento em homenagem à principal liderança abolicionista em São Paulo, Luiz Gama. O busto
esculpido em bronze foi resultado de uma campanha liderada pela imprensa negra paulistana, em
particular
pelo jornal Progresso. Luiz Gama foi advogado autodidata baiano que atuou na capital paulista
consagrando-se pela libertação de inúmeros escravizados, sendo considerado liderança política e
intelectual. O busto foi inaugurado em novembro de 1931, e seguido por um cortejo que foi do Largo
do
Arouche até seu túmulo no Cemitério da Consolação. O monumento é, assim, um marco simbólico para o
movimento negro, que organiza essa mesma caminhada todos os anos (STUMPF; VELLOZO, 2018).
Busto de Luís Gama, situado no canteiro do Largo do Arouche. Fonte: Alessandro M. Shinoda/
reprodução
Folha S. Paulo, 2020.
Ao longo das décadas do século XX, o Largo do Arouche foi se consolidando como um importante lugar
de
encontro, lazer e sociabilidade, não somente pelo uso do espaço público, mas também pelos
equipamentos
comerciais e de lazer que o circundam, como bares, boates e restaurantes.
O marco da constituição dessas formas de sociabilidade foi a ocupação do espaço pelos grupos hoje
representados na sigla LGBTQIA+. Isso se deu a partir de finais da década de 1970, como resultado da
intensa perseguição e controle policial aos seus anteriores espaços de sociabilidade da cidade, o
que
provocava frequentes deslocamentos. Por conta disso, nos anos 1980, o Arouche se tornou o epicentro
do
chamado desbunde gay, expressão que na época designava a atitude de assumir-se homossexual ou sair
do
armário (PERLONGHER, 1987).
Há mais de 60 anos, o entorno do Largo do Arouche é ocupado pela comunidade LGBTQIA+. Os registros
oficiais dessa ocupação são encontrados na esfera de segurança pública estatal, cujo objetivo
descrito
era de combate à criminalidade quando, de fato, era reprimir a comunidade, principalmente as
travestis
que ocupavam e ocupam até hoje parte das ruas próximas como Amaral Gurgel, Rego Freitas, Major
Sertório
e Marquês de Itu, e a Praça da República, para exercerem suas profissões como garotas de programa.
Nos anos 1980, o Largo do Arouche foi marcado por batidas policiais, como a Operação Limpeza ou
Richetti
com enquadramentos, prisões arbitrárias, agressões físicas e verbais. A operação foi batizada com o
nome
do delegado que comandava a batida, José Wilson Richetti. Sobre essa violência, o “[...] relatório
da
Comissão da Verdade, em seu capítulo 7, atenta para as perseguições que aconteciam no local,
principalmente focando nos grupos das travestis e transexuais, durante a ditadura militar. Na década
de
1980, a região foi palco de uma manifestação de grupos de negros, feministas, estudantes contra a
repressão em que culminaram com o grito "O Arouche é nosso!", demonstrando o uso plural e reprimido
da
região. Hoje, o Arouche ainda abriga a comunidade LGBT+, sendo um ponto de encontro de gays,
lésbicas,
travestis, transsexuais, góticos e qualquer um que queira explorar sua identidade vindos de diversas
regiões da cidade, principalmente da periferia, mas também do interior do estado.” (REPEP, 2019)
À esquerda, o jornal Lampião, exemplar de julho de 1980, denuncia os abusos e a violência da
Operação Richetti, na área central da cidade. À direita, manifestação realizada por 13
organizações contra a violência policial. Fonte: Lampião, Fernando Uchoa/ reprodução
Memorial da
Democracia.
Referencias Bibliográficas:
BEUCLAIR, Helcio; SCIFONI, Simone. Largo do Arouche, São Paulo. Por um patrimônio LGBTQIAPD+
nacional.
In: NAKAMUTA, Adriana (org.). Arte, cidade e patrimônio. Futuro e memória nas poéticas
contemporâneas.
Rio de Janeiro: Automática Edições, 2021.
REPEP. Dossiê do Inventário Participativo Minhocão contra gentrificação. São Paulo, 2019. Disponível
em:
bit.ly/minhocaocontragentrificacao