Ficha de referência cultural
Miss Biá, pioneira transformista brasileira, e a drag queen Sheyla Muller. Fonte: Celso Tavares/ G1 e Odilon Alves/ Sesc SP, respectivamente
Os conhecimentos a respeito da montagem transformista e drag englobam os diversos aspectos da
caracterização drag ou transformista, como a forma de se maquiar e de se vestir, o uso de perucas e
acessórios (enchimentos, modelagem corpo e , movimentos dos lábios e interpretação de uma música
(sincronização labial/ lip sync), performar um bate-cabelo (giros de cabeça movimentando cabelos),
andar na passarela, criação de identidades, dentre outros. As personagens criadas são potências
identitárias que possuem personalidade e nome próprio, como um alter ego ou uma persona. Os
conhecimentos envolvendo a montagem transformista e drag foram demarcados como um saber da
comunidade LGBTQIA+ por se tratarem de uma prática historicamente associada à expressão do grupo
social, envolvendo uma ritualidade em torno da caracterização, bem como na transmissão de
conhecimentos e técnicas artísticas.
É preciso ressaltar que a montagem transformista e drag são práticas de caracterização mas carregam
diferenças quanto à intencionalidade dessa montagem. Aqueles que se denominam transformistas, como
Miss Biá, muitas vezes são de gerações anteriores. As transformistas têm seus saberes de montação
cultivados dentro de um contexto cultural histórico próprio brasileiro, onde a caracterização tinha
a intenção de se aproximar de um estereótipo de feminilidade, aquilo que seria a beleza feminina. O
termo transformista também é utilizado para demarcar a diferença entre aqueles que realizavam essa
montação como uma forma de se caracterizar, daquelas que de fato carregavam uma identidade travesti.
Segundo Samile Cunha, “na travesti, há uma negação de seu sexo biológico, enquanto na arte do
transformismo, o que é notável é o desejo de “parecer” uma mulher, e, na drag, há uma brincadeira,
de forma irônica e bem humorada, em que se forja uma caracterização feminina estereotipada” (2020,
p.125).
Já a montação drag está associada às gerações mais recentes que trazem saberes com influências de
culturas internacionais, principalmente norte-americana. Uma das interpretações de drag, é que o
termo seria um acrônimo para Dressed As a Girl (do inglês vestido como uma garota). Contudo, o termo
é amplo e é utilizado atualmente na apresentação de uma maior variedade de formas de caracterização.
Existindo, por exemplo, a drag queen (rainha) - aquelas pessoas que se caracterizam seguindo
estereótipos femininos, sendo muitas vezes homens cis; ou o drag king (rei) - aquelas que se
caracterizam seguindo estereótipos masculinos, sendo muitas vezes mulheres cis.
Ambas montações, transformista e drag, servem como uma forma de se conectar com identidade de gênero
ou sexualidade, explorando barreiras entre um ou outro e dentro de si, tencionando pré-concepções
heteronormativas da imagem dos corpos e seus parâmetros comportamentais. Trata-se da exploração
identitária e/ou sexual dos corpos como territórios de experimentação e expressão. Sheylla Muller
comenta em sua entrevista (2016) sobre os cursos de montação drag, onde se trabalha não apenas a
caracterização em si, mas a construção de uma personagem como uma forma de criação e manifestação
artística. As semelhanças e diferenças entre essas duas montações não são claras e consensuais.
Muito se discute sobre os aspectos artísticos ou não artísticos de cada uma delas, sendo que em
alguns momentos é possível ver uma rivalidade ou aproximações entre as interpretações de
transformismo e drag.
O relato de Ghe Santos mostra a diferença geracional entre as concepções que se fazia e faz sobre a
montação. Ghe começou a se montar/transformar pois, naquela época, via o ser gay como ser mulher,
concepção que mudou ao longo de sua vida. Foram suas amigas de escola que davam dicas de vestuário,
de maquiagem, de esmalte, etc. A primeira vez que pintou as unhas foi com "branquinho", corretivo
usado para corrigir anotações à caneta.
Hoje em dia está muito fácil. Antigamente, como pegava roupa da mãe? Não pegava, né? Pegava roupa escondido, pegava roupa da amiga (…) Hoje você entra um menino numa loja, compra um short, um sutiã, compra até calcinha de acuendação. Naquela época não tinha isso. Era… puxava pra trás, metia a fita e acabou. Mas como fazia isso lá no terminal (de ônibus Amaral Gurgel)? Não dava tempo, tinha que ser tudo muito rápido porque o segurança ia na curra mesmo e batia (...) Precisava se montar muito rápido, precisava roubar roupa de varal, levava, trazia depois devolvia. E era um processo muito mais de resistência, um momento muito complexo. E sair de lá de baixo e chegar até o largo do Arouche montado também era um processo. De lá a gente ouvia muita coisa. Era outro momento, outra situação. Hoje está bem mais fácil. (Ghe Santos, 2022)
Atualmente, com a popularização da montação, é possível encontrar tutoriais de maquiagem nas redes
da internet e até mesmo cursos completos. Porém, não muito tempo atrás, as práticas e técnicas eram
reservadas, ocorrendo nas casas das pessoas, nos camarins de casas de show ou locais públicos, que
eram points conhecidos, como o terminal Amaral Gurgel, próximo ao Largo do Arouche. Esse saber é
passado pelas pessoas que têm mais experiência para quem está iniciando. Isso ocorre de maneira
ativa por meio de ensinamentos e dicas ou de maneira passiva, por meio da observação. As técnicas e
materiais de montação variam e dependem da experiência e do poder de compra de cada pessoa.
A montação é um processo demorado que exige certa habilidade, adquirida e desenvolvida com a
experiência, dividido por etapas e conformada por uma série de conhecimentos. Como exemplo, um dos
conhecimentos marcantes da montagem é a maquiagem que, em geral, é feita em camadas que são
sobrepostas com características artísticas. As principais ferramentas são próprias da maquiagem:
bases, pós de brilho e de sombra, pincéis, lápis, primer, etc. Também podem ser utilizados
utensílios caseiros como escova de dente (para escovar pêlos) e colher de cozinha (para aplicar
massa e modelar a sobrancelha). Esta etapa depende do que se quer criar para a personagem, assim
como o tom da pele natural, a fim de se adquirir combinações de cores contrastantes e/ou
harmoniosas.
As transformistas e drag queens buscam salientar traços femininos pela maquiagem, deixando o rosto
mais côncavo e as linhas mais curvas. Porém, a barba tem surgido recentemente como processo de
resistência, conjugando a montação de drag queens não como algo exclusivamente feminino. Esse outro
processo de montagem busca também romper com as barreiras heteronormativas, por sua vez, os drag
kings buscam rostos mais quadrados e simulam pêlos como barbas, bigodes e sobrancelhas grossas.
Resumidamente, o rosto é coberto com base e então cobertas com camadas de pós (coloridos ou
neutros), sombras e contornos feitos com lápis. Os drag kings podem utilizar sombras, pincéis, lápis
e rímel para engrossar as sobrancelhas. Para confeccionar barbas ou pêlos no peito, além dos
materiais listados acima, também podem utilizar tintas e pêlos artificiais. As barbas podem ser bem
modeladas, barbas ralas "por fazer", ou espessas e longas. Depois, se necessário, os pêlos
artificiais são modelados também com tesoura. As barbas podem também ser coloridas assim como outras
regiões da face, como as dos olhos.
Já as drag queens utilizam-se de mais cores e são caracterizadas por traços exagerados: lábios com
contornos mais largos, olhos fortemente marcados com lápis e cílios postiços. É comum o cobrimento
das sobrancelhas naturais (com massa de modelar, chamada "doce de leite", ou cola e pó compacto) e a
produção de novas sobrancelhas mais alongadas e mais próximas do couro cabeludo, feitas com sombras
e pincéis ou com lápis de contorno. Abaixo da nova sobrancelha são comumente usados pós de várias
cores, dando profundidade à região, chamada de "asa de borboleta".
As perucas também são parte importante da personagem e costumam ser volumosas e coloridas ou em tons
de cabelos naturais. Devem ser bem fixadas de modo a não cair durante a execução de movimentos na
performance.
Historicamente, os conhecimentos da Montagem Transformista e Drag ocupam espaços similares em
apresentações públicas e de estabelecimentos comerciais (bares e baladas LGBTQIA+). Desde o início
estão mais próximos do centro de São Paulo, em especial as casas noturnas do Largo do Arouche, como
a Cantho e a Freedom, mas também a Rua Augusta, alguns locais em Pinheiros e na Barra Funda,
especialmente na Blue Space – considerada por algumas entrevistas como uma das maiores casas
de performance drag do mundo - e na Paulista, como a extinta boate Nostro Mundo. Além das boates,
também existem eventos culturais específicos, como concursos de beleza, que impulsionam as
performances e conhecimentos transformistas e drag. Nas últimas décadas o circuito tem se
modificado, pois se nos anos 1970 o epicentro da vida LGBTQIA+ e drag era a Rua Augusta e no “grand
tour” da ruas 7 de Abril e Barão de Itapetininga e Galeria Metrópole, mais recentemente essa
centralidade passou a estar na região do Arouche (Miss Biá, 2017) . Optamos por demarcar os locais
atrelados a Performance Drag e Transformista e ao Circuito dos Bares, Baladas e Restaurantes como
forma de demonstrar que estas referências caminham juntas e que estes são espaços privilegiados na
transmissão desses saberes.
Os conhecimentos atrelados a Montagem Transformista e Drag também se relaciona a outro circuito de
lojas, pequenos comércios, existentes na região do Arouche. Tratam-se de estabelecimentos comerciais
voltados ao público LGBTQIA+, como casas de roupa voltadas ao público gay, lojas de íntima para
população travesti e transsexual. Entre os comércios que se relacionam a montação, destacamos alguns
exemplos:
_Dellii Stilus: roupa interior sob medida para travestis. A dona é Pati Deli, que promove a festa
Terça Trans, no Bar Queens: Rua Rego Freitas, 136, Vila Buarque.
_Atelier Robytt Moon (memória): importante atelier de moda drag e trans: Rua Rego Freitas, 420
_Dicesar Collection (memória): loja de maquiagem, R. Bento Freitas, 124
_Adóoogo Make Up (memória): loja de cosméticos diversos e também promove cursos de maquiagem,
Galeria do Arouche, Largo do Arouche, 99- loja 20
_DepilMan: casa de depilação masculina: Largo do Arouche, 49/ rua Aurora, 947
Coletivo Arouchianos
Entrevista com Ghe Santos, realizada em junho de 2022
Entrevista com Miss Biá realizada em 27 de abril de 2017
Entrevista com Sheyla Muller realizada em 10 de outubro de 2016
CUNHA, Samile. Transconexões e Estratégias Identitárias. In: ALBERTO, Diana; ANDRADE Rubens de;
NINO, Aldones. Paisagem e Gênero: estratégias identitárias e subjetivação de corpo. Escola de
Belas
Artes, UFRJ. Rio de Janeiro: Paisagens Híbridas, 2020.
REPEP. Dossiê do Inventário Participativo Minhocão contra gentrificação. São Paulo, 2019.
Disponível
em: bit.ly/minhocaocontragentrificao
OUTRAS REFERÊNCIAS CULTURAIS RELACIONADAS
Carnaval de Rua, Circuito dos Bares, Baladas e Restaurantes, Performance Drag, Transformista e
Montação, Sindicato dos Artistas, Teatro de Grupo.